Que o benza
Era véspera de Natal, mas o dia tinha começado tão cedo quanto todos os outros que um corpo de trabalho não sabe o que é descanso. Ainda o dia estava a nascer e já a braseira estalava no meio da sala que uma fogueira é meio sustento e é bem vindo tudo o que ajude a aguentar aquela casa.
Ali, onde não o espaço não acomodava todos os que ali viviam, havia sempre lugar para mais um. Partilha-se o pouco que se tem nem que seja só o cheiro do pão da fornada da outra semana.
As mulheres já estão no barracão que faz as vezes de cozinha. Cabelos escondidos de baixo de um pano velho e mangas arregaçadas prontas a fazerem-se ao trabalho. As mais velhas, com os braços queimados por uma vida de campo, marcavam o ritmo com o bater da massa no alguidar de barro.
-Falta-lhe tempero - diziam depois de provar a massa crua.
Sem cerimónias, lançavam a mão à tigela com o sumo de laranja e tangerina e deitavam mais um pouco da mistura na massa que já enrolavam nos braços. Quilo e meio de farinha e outro tanto ou mais de tudo o resto, misturado numa massa que trabalhavam com as mãos até que ela se soltasse do alguidar sem partir.
-Que Deus te acrescente, que dês para muita gente - dizia a mais velha enquanto benzia a massa antes de a tapar com vários cobertores.
Era tempo de esperar. A cafeteira, mascarrada por tantos anos de fogo, estava a aquecer. Lá dentro, a água começava a borbulhar, pronta para receber as duas colheres bem cheias de café. Uma caneca de café da borra e um bocado de pão com manteiga, comido na calma possível de quem nem se senta para o saborear.
Quando a massa fica pronta para o óleo já o dia vai avançado. A massa é lançada para o calor e elas ali ficam a vê-la crescer e rodar sobre si mesma.
Os velhozes chegam à mesa com o cheiro a açúcar e canela misturados com óleo. Deram para os que ali estão e para quem aparecer. É Natal, há sempre lugar para mais um.