25 de Abril
Num tempo em que se falava por sussurros e se olhava por cima do ombro para garantir que ninguém estava com mais atenção do que devia às conversas de cada um, a rádio era a companhia de muitos. A voz dos locutores tornava-se parte do dia. As melodias, nacionais e não só, embalavam uma vida que muitos achavam que podia ser mais do que aquilo que era. O trabalho pesado, os tostões contados, o estudo terminado porque tinha de ser e não por se querer. Uma vida que oferecia pouco em troca do tanto que era exigido. O medo de falar a ser aprendido desde do berço mesmo que ninguém explicasse o porquê do simples ato de pensar ser usado como prova condenatória.
Quando a televisão era um luxo a que poucos tinham direito, a rádio era o centro da vida. As músicas ouvidas no aparelho e que eram trauteadas no campo para entreter o trabalho, os locutores que ajudavam a enganar as horas enquanto o sono não vinha, o dia a dia onde o rádio a pilhas andava de um lado para o outro a dar música a quem a queria ouvir.
Certa noite, a voz de João Paulo Diniz anunciou que faltavam cinco minutos para as vinte e três horas e, sem ninguém suspeitar a não ser os que sabiam que a mudança estava a chegar, deu início à noite onde diziam que “vamos acabar com o estado a que chegámos”. Uma hora e vinte e cinco minutos depois, quando o antecipar dos anúncios que estavam programados quase comprometeu o que tinha de ser ouvido, “John Português” de Tony de Matos foi interrompido. Sem aviso. Calou-se a música e, para quem estava do lado de lá a ouvir, parecia que o silêncio não ia acabar. Não durou muito. Primeiro vieram os passos, ao longe. O aviso de que tinha começado. Depois, Leite de Vasconcelos declama as palavras que muitos não conheciam e que outros sabiam ser proibidas:
“Grândola, vila morena / Terra da fraternidade / O povo é quem mais ordena / Dentro de ti, ó cidade!”
Enquanto todos dormiam, o país começava a mudar. O barulho dos chaimites a caminho de Lisboa acordou alguns que não deram importância ao que ouviam. “Deve ser um exercício qualquer”, pensaram antes de voltar para a cama. A música na rádio alertou outros que julgavam ter o poder seguro. Mas, independentemente de quem pensou o quê, o dia amanheceu para dar voz ao povo. Sem medos.
As ruas do país encheram-se de vozes que gritavam por liberdade e de medo sobre o que aconteceria aos corajosos se fossem apanhados pelo regime. Mas, de uma maneira ou outra, o dia trouxe a possibilidade de cada um dizer o que pensava sem a preocupação de olhar por cima do ombro. Naquele dia, pela primeira vez, gritou-se aquilo que continuaria a ser repetido com o sentido de orgulho partilhado por todos aqueles que sabem como é frágil a liberdade em que vivemos e como deve ser defendida de quem a tenta atacar. Para honrar quem o fez antes de nós. Para dar a quem vem a seguir a mesma oportunidade que nós tivemos. Que se viva sempre em liberdade. Que a saibamos preservar. Que, tal como há cinquenta anos atrás, se continue a gritar:
25 de Abril, sempre! Fascismo, nunca mais!
Texto escrito para a folha de sala do espectáculo Rádio Abril 19.74 apresentado no dia 21 de Abril de 2024 na Sociedade Cultural e Recreativa de Vale da Pinta